sábado, 9 de agosto de 2025

65 anos da épica da campanha da legalidade: Mais uma vez o Rio Grande do Sul defendendo a Democracia com voz e coragem no Brasil


Por Daniel Matos

Em agosto de 1961, o Brasil viveu um dos momentos mais dramáticos de sua história política: a Campanha da Legalidade. Tudo começou com a renúncia surpresa do presidente Jânio Quadros, em 25 de agosto, que deixou o país à beira do caos. Setores militares e conservadores, alegando temores infundados de uma "ameaça comunista", tentaram impedir a posse do vice-presidente João Goulart, então em viagem à China.  

Foi no Rio Grande do Sul, sob a liderança firme do governador Leonel Brizola, que a resistência se organizou. Com discursos inflamados transmitidos pela Rádio da Legalidade, armas distribuídas à população e o apoio crucial do general José Machado Lopes, Brizola transformou o Palácio Piratini em um quartel-general da democracia. O movimento, que durou 13 dias tensos, evitou um golpe militar e garantiu a posse de Jango — ainda que sob um sistema parlamentarista, uma concessão amarga para os legalistas .  

A Campanha da Legalidade não foi apenas uma vitória constitucional; foi um ato de coragem coletiva, mostrando que, quando o povo se une em defesa da democracia, até os tanques recuam. Este episódio, hoje pouco lembrado, é um farol para o Brasil e para o mundo: a legalidade não se negocia, ela se defende.

Há momentos na história em que o destino de uma nação se decide não apenas nos gabinetes de poder, mas nas ruas, nos microfones e na coragem de quem se recusa a aceitar a ruptura da ordem constitucional. A Campanha da Legalidade, em agosto de 1961, foi um desses episódios épicos — uma batalha cívica que transformou o Rio Grande do Sul no palco da resistência democrática e Leonel Brizola em seu principal bardo e comandante.  

O Cenário da Crise: A Renúncia e a Ameaça Golpista  

Tudo começou com um ato surpreendente: no dia 25 de agosto de 1961, o presidente Jânio Quadros renunciou ao cargo, alegando que "forças terríveis" o pressionavam. Sua decisão, envolta em mistério (muitos acreditam que era uma manobra para retornar com mais poderes ), deixou o país à beira do caos. Pela Constituição, o vice-presidente João Goulart — então em viagem à China — deveria assumir. Mas setores militares e políticos conservadores, temendo sua ligação com movimentos trabalhistas e a esquerda, vetaram sua posse, alegando que Jango representava uma "ameaça comunista" em plena Guerra Fria .  

Era um golpe em gestação. Os ministros militares — Odílio Denys (Guerra), Sílvio Heck (Marinha) e Gabriel Grün Moss (Aeronáutica) — formaram uma junta informal e anunciaram que Goulart não tomaria posse. O presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, assumiu interinamente, mas o poder real estava nas mãos dos generais .  

Brizola e a Revolução das Ondas de Rádio

Foi então que Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul e cunhado de Jango, transformou Porto Alegre no quartel-general da resistência. No Palácio Piratini, ele improvisou um estúdio de rádio e criou a "Cadeia da Legalidade", uma rede de mais de 100 emissoras que transmitiam seus discursos inflamados 24 horas por dia . Sua voz ecoava pelo país:  

"Povo de Porto Alegre, meus amigos do Rio Grande do Sul! [...] Poderei ser esmagado. Poderei ser destruído. Poderei ser morto. Não importa. Ficará o nosso protesto, lavando a honra desta nação."

Brizola não apenas falou — agiu. Distribuiu armas à população, mobilizou a Brigada Militar e conseguiu o apoio crucial do general José Machado Lopes, comandante do III Exército, que rompeu com os golpistas e colocou suas tropas ao lado da legalidade . O cenário era de guerra iminente: tanques se moviam, aviões da Aeronáutica ameaçavam bombardear o Piratini, e multidões se aglomeravam no centro de Porto Alegre, prontas para defender a democracia .  

O Clímax: O Brasil à Beira da Guerra Civil

Por dias, o país esteve à beira de um conflito armado. Tropas federais se preparavam para invadir o Sul, enquanto Brizola e seus aliados fortificavam posições. A "Divisão Cruzeiro", uma força militar golpista, avançava em direção ao Paraná, e o porta-aviões Minas Gerais rumava para o litoral gaúcho .  

Mas a resistência popular e a divisão nas Forças Armadas impediram o pior. Em 1º de setembro, Jango chegou a Porto Alegre, e, sob pressão, os golpistas recuaram. A solução negociada foi a adoção do parlamentarismo, limitando os poderes de Goulart — uma concessão amarga para Brizola, que queria a posse integral .  

Em 7 de setembro, Jango assumiu a presidência. A Legalidade venceu, mas a semente da crise não estava morta: três anos depois, em 1964, os mesmos setores golpistas retornariam, agora com sucesso, no golpe que instaurou a ditadura militar .  

O Legado: Uma Epopeia Cívica

A Campanha da Legalidade foi mais do que um episódio político — foi uma epopeia moderna, onde o povo, armado de convicção e liderado por uma voz firme, mostrou que a democracia pode ser defendida. Brizola, com seu talento oratório e audácia, entrou para a história como o líder que derrotou um golpe antes que ele acontecesse .  

Sua estratégia de comunicação — usando o rádio como arma — foi revolucionária. A "Cadeia da Legalidade" não apenas informou, mas mobilizou o país, antecipando o poder das redes sociais na luta contra a desinformação .  

E, acima de tudo, a Legalidade mostrou que a Constituição não é uma folha de papel — é um pacto vivo, que depende da coragem de quem a defende. Como escreveu o historiador Jorge Ferreira:  

"Foi a única vez, no Brasil, em que um movimento civil conseguiu impedir um golpe militar que tinha a adesão dos três ministros militares e 70% da força armada do país."

Hoje, quando a democracia volta a ser posta à prova em várias partes do mundo, a Campanha da Legalidade permanece como um farol — lembrando que, quando o povo se une em defesa da lei, até os tanques podem recuar.  

Por que, no fim, a verdadeira força de uma nação não está nos canhões, mas na voz daqueles que se recusam a calar.

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Aurora Precursora — Bento Gonçalves Não reconheceria esta braúchada de hoje — Do grito de 1836 à opressão de hoje — O Rio Grande do Sul continua um nação subjugada


Bento Gonçalves foi traído pelos porto-alegrenses. Hoje, estamos reféns de uma política nefasta imposta por Brasília, por seus políticos corruptos e por suas facções criminosas.  

Nossa República já foi proclamada antes mesmo da República brasileira. O que nos mantém vinculados ao Brasil são apenas os laços jurídicos e econômicos. Desde 11 de setembro de 1836, somos a República Rio-Grandense. Há 189 anos, somos uma nação, ainda que subjugada juridica e economicamente pelo Brasil, sendo explorados até o último centavo para sustentar o poder central. Poucos sabem disso.  

Nossa situação assemelha-se à da Escócia, no Reino Unido, ou ao País Basco, na Espanha. A diferença é que essas regiões desfrutam de maior autonomia política, embora também estejam atreladas juridica e economicamente aos seus respectivos Estados.  

Enquanto isso, o Rio Grande do Sul segue sendo espoliado, sustentando um sistema que pouco nos representa. É hora de resgatarmos nossa história e discutirmos um futuro com maior liberdade e autodeterminação.

Bento teria vergonha desta brauchada surfando na onda desses caramurus!

Nayib Bukele — A Falácia da Democracia Liberal Corrupta: Porque o Sistema Atual Mantém o Povo na Miséria

Discurso de Nayib Bukele (Contexto: Sobre corrupção e gestão pública eficiente): 

A corrupção destrói sonhos e acaba com a qualidade de vida da população, enquanto desvia o dinheiro que deveria ser usado para o bem-estar social.  

Mas eu lhes mostro hoje que é possível governar de outra forma: quando o dinheiro público é aplicado com honestidade, os resultados aparecem.  

Não é magia. É gestão.

Em nosso país [El Salvador], provamos que, quando se corta os privilégios dos corruptos, sobra recurso para segurança, saúde e educação. O povo não precisa de esmolas. Precisa de oportunidades geradas por empregos e infraestrutura.  

Se fizemos aqui, qualquer país pode fazer —inclusive o Brasil. Basta ter a coragem de colocar o povo no centro das decisões, não os interesses de políticos."  

Guilherme Fernandes:
A democracia liberal, tão enaltecida como modelo ideal de governança exemplar, revela-se, na prática, um sistema podre e corrupto, projetado para perpetuar a pobreza e beneficiar uma elite política inescrupulosa. O exemplo de Bukele é que é possível fazer um governo sem se ajoelhar aos caprichos da elite liberal mundial, e expõe a verdade crua: enquanto alguns países demonstram que é possível governar com eficiência e transparência, o Brasil e outras nações afundam em um mar de corrupção e má gestão, sustentados por um sistema que privilegia os interesses de poucos em detrimento da maioria.

O estado, sob a máscara de protetor social ou protetor da liberdade, é o maior responsável pelo encarecimento da vida. Através de impostos abusivos, sufoca a economia, encarece produtos e serviços, e destrói empregos. Cada real extraído dos bolsos dos cidadãos é um golpe contra a prosperidade. A solução é óbvia: reduzir impostos ao máximo. Menos tributos significam preços mais baixos, mais consumo, e empresas com capacidade para contratar. Empregos geram dignidade, não esmolas. No entanto, o sistema atual não quer isso. 

Os políticos corruptos dependem da miséria alheia para se manter no poder. Auxílios governamentais não são caridade, são amarras. Enquanto o povo é mantido refém de migalhas, a classe política enriquece e consolida seu domínio. Bukele mostrou que é possível governar para o povo, não contra ele. Mas no Brasil, a lógica é inversa: quanto mais pobreza, mais votos comprados com promessas vazias. 

A democracia liberal, em sua forma atual, é uma farsa. Não passa de um esquema bem-orquestrado para legitimar a pilhagem do erário público. Enquanto os cidadãos acreditam que seu voto muda algo, os mesmos grupos de sempre controlam os cordões do poder, distribuindo benesses para seus aliados e mantendo a população na ignorância e na dependência. 

A verdadeira mudança começa com a destruição drástica do Estado liberal e uma limpeza da casta política corrupta que parasitam a vida das pessoa. Impostos baixos, governo eficiente e foco no  desenvolvimento social e a construção de uma comunidade organzada forte são o caminho. O povo não precisa de esmolas, precisa de oportunidades e viver bem. Bukele provou que é possível. 

Enquanto a democracia liberal corrupta for a regra, a pobreza será o resultado.


terça-feira, 5 de agosto de 2025

Aurora Precursora - Contra o Teatro EsquerdaVSDireita: Pela Superação da Divisão Bipartida Iluminista





Por Aurora Precursora

Os conceitos de "esquerda" e "direita" são conceitos nulos, criados por uma falsa dicotomia. Ademais, esquerda e direita não são essências platônicas imutáveis. Ser de direita, no século 19, era ser pró igualdade perante a lei enquanto a direita postulava as prerrogativas legais - voto censitário por exemplo. No século 20 a esquerda passou a postular privilégios legais para minorias e a direita passou a defender a igualdade perante a lei. Posições de direita ou esquerda não significam nada em si mesmas. A direita em geral se posiciona a favor da ordem e a esquerda da mudança mas o que é essa ordem e esta mudança vai depender de cada contexto histórico. Qualquer pessoa minimamente razoável sabe que há coisas a serem mantidas e outras modificadas de modo que assumir-se, a priori, de esquerda ou de direita é uma forma de ser imbecil. Este é o primeiro passo para você entender alguma coisa de política. Ela não se reduz ao debate esquerda/direita. Por exemplo: eu postulo a filosofia política de Platão que advoga uma aristocracia filosófica governando a sociedade. Isso é ser de esquerda ou de direita? Existe agora uma ordem aristocrática que permita eu me posicionar em favor dela? Não. Alguém poderia alegar que eu, ao defender esse modelo, sou de esquerda por pretender uma mudança e o nascimento de uma nova ordem. Porém a esquerda que temos agora é social democrata e não admitiria, jamais, a idéia duma aristocracia. Logo o conceito de esquerda/direita é falho. Se valer disso no debate político é a prova da absoluta desqualificação para o mesmo.

A política moderna está atolada em uma dicotomia preguiçosa: esquerda versus direita. Essa divisão, ainda que tenha tido alguma utilidade didática em momentos históricos específicos, tornou-se hoje uma camisa de força intelectual, uma caricatura a serviço da despolitização profunda da sociedade. O que se apresenta como debate é, em realidade, a simulação de um embate entre duas formas domesticadas do mesmo pensamento raso, presas a categorias fossilizadas que já não explicam nem orientam com rigor os conflitos fundamentais do nosso tempo.

É preciso começar por desfazer o mito da imutabilidade dessas categorias. Direita e esquerda não são essências platônicas, não existem no mundo das ideias como formas perfeitas que se manifestam de maneira idêntica ao longo da história. Elas são rótulos mutáveis, contextuais, contingentes. No século XIX, por exemplo, ser de "direita" era, paradoxalmente, ser a favor da igualdade formal — igualdade perante a lei, fim dos privilégios de nascimento, direito à propriedade — em oposição aos resquícios aristocráticos e patrimonialistas que defendiam prerrogativas legais exclusivas (como o voto censitário), muitas vezes sob o pretexto de estabilidade ou "ordem natural".

Já no século XX, com a ascensão dos movimentos sociais e do Estado intervencionista, essa equação se inverteu. A “esquerda” passou a defender, cada vez mais, privilégios legais para grupos específicos, operando com categorias identitárias e postulando que a justiça exige desigualdade legal como forma de “compensação histórica”. A “direita”, por sua vez, passou a erguer a bandeira da igualdade jurídica e da neutralidade do Estado, retornando ao liberalismo clássico. Assim, o conteúdo de “esquerda” e “direita” muda radicalmente de uma época para outra.

Portanto, dizer que alguém é “de esquerda” ou “de direita” é dizer, na prática, quase nada. O único traço que parece persistir — e mesmo este é vago — é a associação da direita com a ordem e da esquerda com a mudança. Mas essa também é uma ilusão: ordem e mudança são categorias históricas. Defender a ordem no contexto da França absolutista do século XVIII é algo radicalmente diferente de defender a ordem no contexto da União Soviética de Stalin, ou dos Estados Unidos de hoje. O que é “conservar” ou “revolucionar” depende inteiramente daquilo que está sendo conservado ou revolucionado.

A verdade incômoda é que qualquer pessoa com um mínimo de bom senso político — e não apenas sensibilidade ideológica — sabe que há elementos do mundo que devem ser preservados, e outros que exigem reforma ou ruptura. O ato de aderir a uma identidade política fixa — de se “assumir” de esquerda ou de direita — é, antes de tudo, uma forma de fugir do pensamento real e mergulhar numa zona de conforto tribalista, onde tudo já está decidido de antemão. Trata-se, em última análise, de uma forma disfarçada de imbecilidade moral e intelectual.

Suponha que eu defenda, como Platão, que a política ideal seria conduzida por uma aristocracia filosófica — isto é, por aqueles que foram educados para conhecer o Bem, o Justo e o Belo. Trata-se de uma forma de governo não democrática, hierárquica, seletiva e voltada à excelência do espírito humano. Isso é “de esquerda” ou “de direita”?

Se considerarmos que tal regime implicaria uma ruptura profunda com o status quo, poder-se-ia dizer que é “esquerdista”. Mas a esquerda contemporânea, enraizada no igualitarismo sentimental e na lógica da representatividade, jamais aceitaria uma elite baseada na excelência intelectual ou moral — ela exige uma elite rotativa, proporcional, mediada por cotas e quotas. Por outro lado, a direita liberal tampouco aceitaria uma estrutura que nega a democracia de mercado. Assim, a proposta platônica é simultaneamente inaceitável para ambas as tribos, demonstrando que a oposição esquerda-direita é incapaz de abarcar formas alternativas e mais elevadas de pensamento político.

O que se evidencia é que a política não pode ser reduzida a essas categorias infantis, úteis talvez a manuais escolares ou a slogans eleitorais, mas inadequadas para pensar seriamente os dilemas civilizacionais que enfrentamos. Os desafios do nosso tempo — desde o colapso ecológico até a dissolução das instituições públicas, desde o niilismo cultural até a ascensão da tecnocracia algorítmica — exigem uma imaginação política que vá além do binarismo que nos infantiliza.

Recusar-se a jogar o jogo da esquerda e da direita não é neutralidade, nem centrismo — é rebelião filosófica. É afirmar que o real é mais complexo do que os esquemas mentais herdados. É ousar pensar por conta própria. É recusar-se a ser uma peça substituível no tabuleiro de uma guerra sem sentido.

Quem continua falando em esquerda e direita como se isso dissesse algo essencial sobre política revela apenas sua desqualificação para o debate sério. A crítica começa onde termina o teatro ideológico.

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Guilherme Fernandes - O Progressismo Pioneiro do RS: Tradição e Valores que a Esquerda Liberal Não Pode Apagar

Contra o ódio e o ressentimento da esquerda liberal, o RS sempre foi um estado progressista. E não confundam o nosso progressismo com o da esquerda liberal. O nosso progressismo sempre esteve à frente nas questões mais importantes do país, como o pioneirismo no republicanismo, na guerra pela independência, no abolicionismo, na fundamentação de valores trabalhistas, na reestruturação de ideias trabalhistas e no industrialismo — tudo isso antes mesmo de o resto do Brasil sequer pensar em defender esses valores.  

Somos um estado com o maior número de adeptos do batuque e, mesmo assim, o mais católico, impedindo o avanço do neopentecostalismo aqui. Sempre fomos hegemônicos em todas as questões. Aqui, as coisas sempre foram "8 ou 80", e os últimos acontecimentos políticos confundiram muita gente ao analisarem nossa mentalidade política.  

Por isso, a estigma de estado "fascista" é uma narrativa completamente equivocada da esquerda liberal, que tenta se apropriar dos valores que nós, gaúchos, sempre defendemos, apresentando-os como conquistas e pautas próprias.

Guilherme Fernandes - A Profundidade das Raízes Gaúchas: Para Além do Nacionalismo Superficial


O nacionalista europeu deve conhecer a história, mitos, valores e símbolos europeus, tal como o nacionalista africano e o identitário indígena devem conhecer os seus, na medida das possibilidades.  

O desafio para nós é mais abrangente.  

O Rio Grande do Sul surge oficialmente em certa data (como um protetorado do império espanhol), mas suas raízes afundam na Antiguidade de diferentes povos e tradições. O RS é muitas vezes ensinado como "tábula rasa", uma terra sem raízes que aparece repentinamente e se desenvolve a partir do nada e sem qualquer padrão.  

Sabemos "de onde" e "como" veio o Rio Grande do Sul – mais ou menos a partir das missões jesuíticas, da colonização açoriana e imigrações européias – mas o que o gaúcho sabe sobre a Galícia e suas raízes celtas, sobre os suevos e visigodos que influenciaram a cultura ibérica, sobre a Reconquista e o papel dos espanhóis e português na formação do território? O que o gaúcho sabe sobre os povos charruas, minuanos, guaranis e suas tradições? E o que ele realmente sabe sobre os imigrantes alemães, italianos e seus legados? 

E o que o gaúcho sabe sobre os africanos e seus descendentes no RS? Sobre os escravizados que trabalharam nas charqueadas, nos estancieiros, e nas cidades, deixando marcas profundas na cultura, na música, na religiosidade e até mesmo no linguajar do estado? O que se conhece dos batuques, das irmandades negras em Porto Alegre e Pelotas, ou da participação heróica dos lanceiros negros na Revolução Farroupilha? A presença afro-gaúcha, muitas vezes invisibilizada pela elite porto-alegrense, é parte essencial da identidade rio-grandense, mesclando-se com as tradições europeias, indígenas e campeiras, mas também mantendo traços próprios que resistiram ao tempo. O nacionalista gaúcho que ignora essa herança está negando uma das raízes que sustentam o próprio ser rio-grandense.  

O nacionalista gaúcho, portanto, precisa necessariamente estar conectado com tudo isso, bem como com as expressões contemporâneas desses nacionalismos e identitarismos dos povos-raízes.  

Sem isso, o gaúcho não consegue entender a si mesmo. Permanecerá com uma consciência infantil.  

E o gaúcho precisa entender as várias maneiras pelas quais cada uma dessas influências se misturou e se enraizou no RS. Porque a confluência dessas várias raízes não resultou em uma mistureba nivelada genérica. Ao contrário, existem fenômenos que possuem feições fundamentalmente europeias, mas com contornos indígenas, outros são fortemente marcados pela cultura missioneira ou pela tradição campeira, e em outros se sobressai a contribuição imigrante, e por aí vai.  

Tal como no âmbito etnorracial não existe apenas o "mestiço", mas o gaúcho tradicional (como figura euro-ameríndia adaptada ao pampa), o descendente de imigrantes (como figura culturalmente distinta dentro do RS), e o enraizamento de cada um desses tipos em diferentes partes do estado e seu desenvolvimento ao longo dos séculos gerou diferentes identidades – irredutíveis umas às outras ou a qualquer categoria genérica. O mesmo se dá no âmbito cultural, simbólico, folclórico, etc.  

É uma tarefa muito mais ampla e mais desafiadora do que estudar sobre as charqueadas do século XIX, a Revolução Farroupilha de forma superficial, ou esses outros fatores materiais que se costuma privilegiar no estudo do Rio Grande do Sul.

segunda-feira, 17 de março de 2025

Juan Pablo Vitali - A Verdadeira Identidade da América Ibérica


Juan Pablo Vitali - A Verdadeira Identidade da América Ibérica


por Juan Pablo Vitali

Esquecer a grandeza é um trabalho árduo. Converter-se em uma subcultura da decadência não é coisa fácil, acima de tudo quando se conservam alguns reflexos provenientes de uma grande cultura.

A Argentina é uma mostra claro disso. A grande Europa teve ao Sul a continuidade de sua cultura, a transmutação mágica de seu idioma. Homens da estirpe de Jorge Luis Borges e Leopoldo Lugones entre tantos outros, em meio dos avatares próprios de nossa decadência, desenvolveram a universalidade europeia de uma cultura, dentro do particular entorno de sua última grande fronteira: a Argentina.

A identidade que a Europa perde, também a vão perdendo os territórios distantes nos quais predominou sua civilização e que são parte integrante de sua história. Em meio dessa dolorosa perda e separação, gestaram-se homens de uma dimensão cultural e heróica hoje em dia muito difícil de alcançar. Eles assumiram a continuidade de algo que não é o que habitualmente se denomina América Latina, senão América Ibérica, a Nova Europa renascida, após suas múltiplas e iniciáticas mortes. Isso é assim porém ninguém quer, nem se anima a reconhecê-lo.

Nós o reconhecemos, porque formamos parte da aventura inigualável da cultura europeia em sua continuidade milenária. Nossa antiga matriz cultural projeta todavia sua elevada sombra sobre nós, se projeta e transmutam os processos culturais da Europa, em um território que é também Europa culturalmente; uma nova Europa que necessita custe o que custar da grandeza da antiga, nos espaços intermináveis que se fizeram a sua imagem na infinitude mágica e misteriosa do novo continente, onde seus homens tiveram que assumir um novo enraizamento a partir do exílio, nessa idade escura da decadência, com as formas particulares do crioulismo, para poder voltar a ser.

Se queremos compreender nossa identidade cultural e suas obras, devemos nos aventurar na dolorosa idéia do que Oswald Spengler chamara "Der Untergang des Abendlandes" - e que foi traduzido como "A Decadência do Ocidente" - isso nos representa muito mais do que a mal chamada "América Latina".

Espero que nos jardis escuros do Rio da Prata, se sigam escrevendo por muito tempo as palavras simbólicas que conjurem uma e outra vez a decadência, partindo da assunção definitiva de uma identidade negada por ignorância, por conveniência, ou por covardia.

América românica, América hispânica, América crioula - porque há que dizer mil vezes, que crioulo é o descendente de europeu nascido fora da Europa - essa é nossa identidade, dinâmica sim, porém sem negar jamais milênios de uma cultura própria para assumir uma alheia.

Para poder respeitar há que exigir a sua vez ser respeitados, e para ser respeitado devemos nos respeitar primeiramente a nós mesmos, sendo cabalmente conscientes de qual é nossa real e verdadeira identidade. Somente esse respeito nos dará a força necessária para enfrentar os que não nos respeitam.

Sirva este pequeno texto introdutório, para inaugurar uma série de textos que mostrem e demonstrem algo que em condições normais, não seria necessário demonstrar: que os países da América Ibérica são feitio da Europa, e que o crioulismo é uma identidade forjada a partir do eixo incontroverso da cultura europeia profunda, ainda que haja recebido em maior ou menor medida e segundo cada país, outros aportes.

quinta-feira, 6 de março de 2025

Alberto Buela - O Cavalo no Martín Fierro


Alberto Buela - O Cavalo no Martín Fierro


por Alberto Buela

(2011)

O que já não foi dito sobre o nosso Poema Nacional que poderíamos dizer nós. Aqui, só nos ocuparemos de um detalhe: aquilo que Fierro diz sobre o cavalo. Claro está que não é um detalhe menor, pois não se pode pensar no gaucho sem o cavalo, a menos que estejamos falando dos gaúchos paraguaios, que como muito bem diz don Justo Pastor Benítez em seu belo "Solar Guaraní", eles são "gaúchos a pé", especialmente após a desastrosa Guerra da Tríplice Aliança (1865-1870) que destruiu vidas e fazendas do Paraguai.

O cavalo está presente ao longo do poema, mas contrariamente ao que se poderia pensar, como tema é considerado apenas uma vez por Fierro, e ele o faz a propósito do tratamento na doma e do uso que o índio lhe dava, com uma menção esporádica à doma crioula. Esta última é relatada logo no início do poema, quando falando da vida bucólica do gaucho, período que vai desde os primeiros tempos de vaqueiradas até a época de Rosas, ele diz:


"Eu conheci esta terra,
onde o peão vivia
e tinha seu ranchinho
e seus filhos e mulher...
era uma delícia ver
como passava os dias."


E algumas estrofes mais adiante, ele relata o trabalho do domador dizendo:


O que era peão domador
endereçava o curral,
onde estava o animal
-bufando como o diabo... -
e, mais maldoso que sua sogra,
se encrespava o bagual.

E lá o gaúcho inteligente
assim que o potro encabrestou,
os arreios ajeitou,
e montou nele de imediato,
pois o homem mostra na vida
a astúcia que Deus lhe deu.

E nas praias corcoveando
em pedaços se fazia o cavalo
enquanto ele pelas espáduas
lhe jogava as rédeas
e ao som das selas
saía fazendo-lhe manobras.



Como podemos ver, isso é, mais ou menos, o que ainda é feito hoje no adestramento comum de potros. Embora haja algumas diferenças, já que, pelo menos nos pampas úmidos, a grande carona de couro, que era tão popular com o lomillo no século passado, não é mais usada. Hoje, o recado de bastos o substituiu, embora valha a pena observar que recentemente houve uma recuperação do lomillo, embora não no uso cotidiano, pelo menos nos centros tradicionalistas, e isso é lisonjeiro.

A primeira observação que Fierro faz sobre o tratamento dado pelo índio ao seu pingo é sobre o tipo de passo que ele usou.


Faz troteadas tremendas
do fundo do deserto
.........................
Marcha o índio em trote longo,
passo que rende e dura.


Isso permaneceu conosco sob o nome de “trote crioulo”, um passo usado para marchas longas e que adquire toda a sua força após o segundo suor, quando o animal consegue adaptar totalmente o corpo e a respiração ao ritmo desse passo.

Ele também descreve a maneira de montar:

Sempre cheios de receios
nos cavalos peludos
eles vêm seminus.
Dessa forma, cavalga com leveza
não cansa o mancarron;


E como eles cuidam dele e o vigiam até mesmo à noite:


Porque, velando por ele, não come,
nem ainda o sono concilia;
Somente nisso não há desídia;
se noite, lhes asseguro,
para mantê-lo seguro
a família o cerca.


Fierro exalta a bondade da carga aborígine, sua velocidade e destreza, em duas ocasiões, uma delas na fronteira, quando luta com o filho de um cacique:


Todo pampa anda valente
está sempre bem montado
Que frotas os bárbaros trazem!
como uma luz de ligeiros!


E o outro depois do duelo em defesa do cativo cujo filho pequeno foi morto:


Eu me sentei com o dos pampas,
era um escuro coberto
era um pingo como galgo
que sabia correr boleado.

 

Imediatamente após esse verso, localizado no canto X de La Vuelta, começa a longa exposição de onze linhas sobre o treinamento e a educação do cavalo pelo índio.

É interessante notar que Fierro não trata mais do assunto do cavalo, exceto por uma menção esporádica ocasional. Isso quer dizer que praticamente a partir da segunda metade do poema - La Vuelta tem trinta e três versos, enquanto a primeira parte de El Gaucho Martín Fierro tem apenas treze - o cavalo desaparece como tema.


O pampa educa o cavalo
como para um entrevero;
como raio é de ligeiro
assim que o índio o toca;
e, como pião, na boca
dá voltas sobre um couro

O embaralha na madrugada;
jamais falta nesse dever;
logo o ensina a correr
entre lamas e atoleiros;
assim esses animais
é quanto se pode ver!

No cavalo de um pampa
não há perigo de rolar,
arre! e pra disparar
é pingo que não se cansa;
com prodigalidade o amansa
sem deixá-lo corcovear.

Para tirar as cócegas
com cuidado o manuseia;
horas inteiras emprega,
e, enfim, só a deixa,
quando dobra as orelhas
e o potro nem coiceia.

Jamais o sacude um galope
porque trata o bagual
com paciência sem igual;
ao domá-lo não o pega,
até que, por fim, se entrega
já dócil o animal.

E eu sobre os bastos
sei como sacudir a poeira,
a esse costume me amoldo;
com paciência o manejam
e ao dia seguinte o deixam
rédea acima junto ao toldo.

Assim todo o que procure
ter um pingo modelo
Há de cuidá-lo com desvelo,
e deve impedir também
o que de golpes lhe deem
ou lancem no solo.

Muitos querem dominá-lo
com rigor e açoite,
e se virem o chafalote
que tem figura de mau,
o marcam em algum pau
o marcam em algum pau
até que se descogoteie.
 
 Todos se tornam prontos
e voltados para selá-lo:
dizem que é para quebrá-lo,
mas compreene qualquer tolo
que é por medo da corcova
e não querem confessá-lo.

O animal equino
(perdoe-me a advertência)
é de muita sapiência
e tem muito sentido;
é animal consentido:
o cativa a paciência.
 
Todos se tornam prontos
e voltados para selá-lo:
dizem que é para quebrá-lo,
mas compreene qualquer tolo
que é por medo da corcova
e não querem confessá-lo.

O animal equino
(perdoe-me a advertência)
é de muita sapiência
e tem muito sentido;
é animal consentido:
o cativa a paciência.

Sobressai aos demais
O que estas coisas entenda;
é bom que o homem aprenda,
pois há poucos domadores
e muitos apressados
que andam com focinheira e freio.

Da leitura atenta desses versos, depreendem-se três ou quatro ideias: destaca-se, em primeiro lugar, a paciência como regra na doma dos potros; depois, a regularidade das tarefas até criar-lhes um hábito; e, acima de tudo, a suavidade no manejo do animal. Como vemos, se há algo que Fierro desaconselha, é o uso de golpes e violência na educação do cavalo. Por isso, ele pode falar de "muitos frangoyadores", pois frangollón é o trapalhão, aquele que faz algo apressada e malfeito.

Fazer um animal completo como o "moro de número", ou seja, destacado e excepcional como aquele que Fierro levou à fronteira, implica muito tempo, e isso era um privilégio possível naquela época, quando "o tempo ainda era a demora do que está por vir", e não como agora, que se transformou em dinheiro: time is money, como querem nos inculcar os meios de comunicação de massa. Assim, podemos dizer que resgatar aquele tempo tão americano, entendido como "amadurecer com as coisas", é uma das tarefas mais exigentes da atualidade, porque, em última análise, trata-se de resgatar o aspecto existencial da vida crioula, que a intelligentsia nativa sempre associou à sesta, à vagância e à indolência, seja nativa ou gaúcha.

Quando são publicados trabalhos como o presente, oriundos de uma coleção de artigos editados em diferentes circunstâncias, corre-se o risco de que se transformem em uma coletânea de textos sem um fio condutor. Por isso, impõe-se uma breve explicação ao leitor desta obra.

Em primeiro lugar, publicamos este texto a pedido de vários amigos que viam essa série de reflexões se perder dispersa aqui e ali. E, em segundo lugar, porque consideramos que existe um fio condutor, pois acreditamos que todos esses trabalhos demonstram que o elemento grego é um aspecto substancial de nossa cosmovisão heleno-cristã, ambivalentemente chamada de judaico-cristã, que deve ser resgatada em todos os seus aspectos se pretendemos enfrentar com certo êxito esta globalização que se impõe e nos desnatura.

O elemento grego é, para nós, parte da tradição mais viva que o Ocidente nos legou. É por isso que pretendemos chamar a atenção para sua substituição pelo judaico, sobretudo no Ocidente anglo-saxão, a partir de uma leitura interessada, política e ideologicamente enviesada da natureza do ser ocidental. O judaico-cristianismo, como definição do Ocidente, é tão falso quanto o latino-americanismo como definição de Nossa América.

Resgatar os ensinamentos dos gregos em seus aspectos primordiais tem sido, e continua sendo, uma tarefa de todos os tempos, e que os pensadores desprovidos de aditivos ideológicos devem realizar, nem que seja por uma ascese da inteligência. E os artistas, como uma imersão na beleza em sua forma mais pura.