Por Aurora Precursora
Os conceitos de "esquerda" e "direita" são conceitos nulos, criados por uma falsa dicotomia. Ademais, esquerda e direita não são essências platônicas imutáveis. Ser de direita, no século 19, era ser pró igualdade perante a lei enquanto a direita postulava as prerrogativas legais - voto censitário por exemplo. No século 20 a esquerda passou a postular privilégios legais para minorias e a direita passou a defender a igualdade perante a lei. Posições de direita ou esquerda não significam nada em si mesmas. A direita em geral se posiciona a favor da ordem e a esquerda da mudança mas o que é essa ordem e esta mudança vai depender de cada contexto histórico. Qualquer pessoa minimamente razoável sabe que há coisas a serem mantidas e outras modificadas de modo que assumir-se, a priori, de esquerda ou de direita é uma forma de ser imbecil. Este é o primeiro passo para você entender alguma coisa de política. Ela não se reduz ao debate esquerda/direita. Por exemplo: eu postulo a filosofia política de Platão que advoga uma aristocracia filosófica governando a sociedade. Isso é ser de esquerda ou de direita? Existe agora uma ordem aristocrática que permita eu me posicionar em favor dela? Não. Alguém poderia alegar que eu, ao defender esse modelo, sou de esquerda por pretender uma mudança e o nascimento de uma nova ordem. Porém a esquerda que temos agora é social democrata e não admitiria, jamais, a idéia duma aristocracia. Logo o conceito de esquerda/direita é falho. Se valer disso no debate político é a prova da absoluta desqualificação para o mesmo.
A política moderna está atolada em uma dicotomia preguiçosa: esquerda versus direita. Essa divisão, ainda que tenha tido alguma utilidade didática em momentos históricos específicos, tornou-se hoje uma camisa de força intelectual, uma caricatura a serviço da despolitização profunda da sociedade. O que se apresenta como debate é, em realidade, a simulação de um embate entre duas formas domesticadas do mesmo pensamento raso, presas a categorias fossilizadas que já não explicam nem orientam com rigor os conflitos fundamentais do nosso tempo.
É preciso começar por desfazer o mito da imutabilidade dessas categorias. Direita e esquerda não são essências platônicas, não existem no mundo das ideias como formas perfeitas que se manifestam de maneira idêntica ao longo da história. Elas são rótulos mutáveis, contextuais, contingentes. No século XIX, por exemplo, ser de "direita" era, paradoxalmente, ser a favor da igualdade formal — igualdade perante a lei, fim dos privilégios de nascimento, direito à propriedade — em oposição aos resquícios aristocráticos e patrimonialistas que defendiam prerrogativas legais exclusivas (como o voto censitário), muitas vezes sob o pretexto de estabilidade ou "ordem natural".
Já no século XX, com a ascensão dos movimentos sociais e do Estado intervencionista, essa equação se inverteu. A “esquerda” passou a defender, cada vez mais, privilégios legais para grupos específicos, operando com categorias identitárias e postulando que a justiça exige desigualdade legal como forma de “compensação histórica”. A “direita”, por sua vez, passou a erguer a bandeira da igualdade jurídica e da neutralidade do Estado, retornando ao liberalismo clássico. Assim, o conteúdo de “esquerda” e “direita” muda radicalmente de uma época para outra.
Portanto, dizer que alguém é “de esquerda” ou “de direita” é dizer, na prática, quase nada. O único traço que parece persistir — e mesmo este é vago — é a associação da direita com a ordem e da esquerda com a mudança. Mas essa também é uma ilusão: ordem e mudança são categorias históricas. Defender a ordem no contexto da França absolutista do século XVIII é algo radicalmente diferente de defender a ordem no contexto da União Soviética de Stalin, ou dos Estados Unidos de hoje. O que é “conservar” ou “revolucionar” depende inteiramente daquilo que está sendo conservado ou revolucionado.
A verdade incômoda é que qualquer pessoa com um mínimo de bom senso político — e não apenas sensibilidade ideológica — sabe que há elementos do mundo que devem ser preservados, e outros que exigem reforma ou ruptura. O ato de aderir a uma identidade política fixa — de se “assumir” de esquerda ou de direita — é, antes de tudo, uma forma de fugir do pensamento real e mergulhar numa zona de conforto tribalista, onde tudo já está decidido de antemão. Trata-se, em última análise, de uma forma disfarçada de imbecilidade moral e intelectual.
Suponha que eu defenda, como Platão, que a política ideal seria conduzida por uma aristocracia filosófica — isto é, por aqueles que foram educados para conhecer o Bem, o Justo e o Belo. Trata-se de uma forma de governo não democrática, hierárquica, seletiva e voltada à excelência do espírito humano. Isso é “de esquerda” ou “de direita”?
Se considerarmos que tal regime implicaria uma ruptura profunda com o status quo, poder-se-ia dizer que é “esquerdista”. Mas a esquerda contemporânea, enraizada no igualitarismo sentimental e na lógica da representatividade, jamais aceitaria uma elite baseada na excelência intelectual ou moral — ela exige uma elite rotativa, proporcional, mediada por cotas e quotas. Por outro lado, a direita liberal tampouco aceitaria uma estrutura que nega a democracia de mercado. Assim, a proposta platônica é simultaneamente inaceitável para ambas as tribos, demonstrando que a oposição esquerda-direita é incapaz de abarcar formas alternativas e mais elevadas de pensamento político.
O que se evidencia é que a política não pode ser reduzida a essas categorias infantis, úteis talvez a manuais escolares ou a slogans eleitorais, mas inadequadas para pensar seriamente os dilemas civilizacionais que enfrentamos. Os desafios do nosso tempo — desde o colapso ecológico até a dissolução das instituições públicas, desde o niilismo cultural até a ascensão da tecnocracia algorítmica — exigem uma imaginação política que vá além do binarismo que nos infantiliza.
Recusar-se a jogar o jogo da esquerda e da direita não é neutralidade, nem centrismo — é rebelião filosófica. É afirmar que o real é mais complexo do que os esquemas mentais herdados. É ousar pensar por conta própria. É recusar-se a ser uma peça substituível no tabuleiro de uma guerra sem sentido.
Quem continua falando em esquerda e direita como se isso dissesse algo essencial sobre política revela apenas sua desqualificação para o debate sério. A crítica começa onde termina o teatro ideológico.