O desafio para nós é mais abrangente.
O Rio Grande do Sul surge oficialmente em certa data (como um protetorado do império espanhol), mas suas raízes afundam na Antiguidade de diferentes povos e tradições. O RS é muitas vezes ensinado como "tábula rasa", uma terra sem raízes que aparece repentinamente e se desenvolve a partir do nada e sem qualquer padrão.
Sabemos "de onde" e "como" veio o Rio Grande do Sul – mais ou menos a partir das missões jesuíticas, da colonização açoriana e imigrações européias – mas o que o gaúcho sabe sobre a Galícia e suas raízes celtas, sobre os suevos e visigodos que influenciaram a cultura ibérica, sobre a Reconquista e o papel dos espanhóis e português na formação do território? O que o gaúcho sabe sobre os povos charruas, minuanos, guaranis e suas tradições? E o que ele realmente sabe sobre os imigrantes alemães, italianos e seus legados?
E o que o gaúcho sabe sobre os africanos e seus descendentes no RS? Sobre os escravizados que trabalharam nas charqueadas, nos estancieiros, e nas cidades, deixando marcas profundas na cultura, na música, na religiosidade e até mesmo no linguajar do estado? O que se conhece dos batuques, das irmandades negras em Porto Alegre e Pelotas, ou da participação heróica dos lanceiros negros na Revolução Farroupilha? A presença afro-gaúcha, muitas vezes invisibilizada pela elite porto-alegrense, é parte essencial da identidade rio-grandense, mesclando-se com as tradições europeias, indígenas e campeiras, mas também mantendo traços próprios que resistiram ao tempo. O nacionalista gaúcho que ignora essa herança está negando uma das raízes que sustentam o próprio ser rio-grandense.
O nacionalista gaúcho, portanto, precisa necessariamente estar conectado com tudo isso, bem como com as expressões contemporâneas desses nacionalismos e identitarismos dos povos-raízes.
Sem isso, o gaúcho não consegue entender a si mesmo. Permanecerá com uma consciência infantil.
E o gaúcho precisa entender as várias maneiras pelas quais cada uma dessas influências se misturou e se enraizou no RS. Porque a confluência dessas várias raízes não resultou em uma mistureba nivelada genérica. Ao contrário, existem fenômenos que possuem feições fundamentalmente europeias, mas com contornos indígenas, outros são fortemente marcados pela cultura missioneira ou pela tradição campeira, e em outros se sobressai a contribuição imigrante, e por aí vai.
Tal como no âmbito etnorracial não existe apenas o "mestiço", mas o gaúcho tradicional (como figura euro-ameríndia adaptada ao pampa), o descendente de imigrantes (como figura culturalmente distinta dentro do RS), e o enraizamento de cada um desses tipos em diferentes partes do estado e seu desenvolvimento ao longo dos séculos gerou diferentes identidades – irredutíveis umas às outras ou a qualquer categoria genérica. O mesmo se dá no âmbito cultural, simbólico, folclórico, etc.
É uma tarefa muito mais ampla e mais desafiadora do que estudar sobre as charqueadas do século XIX, a Revolução Farroupilha de forma superficial, ou esses outros fatores materiais que se costuma privilegiar no estudo do Rio Grande do Sul.