Esquecer a grandeza é um trabalho árduo. Converter-se em uma subcultura da decadência não é coisa fácil, acima de tudo quando se conservam alguns reflexos provenientes de uma grande cultura.
segunda-feira, 17 de março de 2025
Juan Pablo Vitali - A Verdadeira Identidade da América Ibérica
por Juan Pablo Vitali
A Argentina é uma mostra claro disso. A grande Europa teve ao Sul a continuidade de sua cultura, a transmutação mágica de seu idioma. Homens da estirpe de Jorge Luis Borges e Leopoldo Lugones entre tantos outros, em meio dos avatares próprios de nossa decadência, desenvolveram a universalidade europeia de uma cultura, dentro do particular entorno de sua última grande fronteira: a Argentina.
A identidade que a Europa perde, também a vão perdendo os territórios distantes nos quais predominou sua civilização e que são parte integrante de sua história. Em meio dessa dolorosa perda e separação, gestaram-se homens de uma dimensão cultural e heróica hoje em dia muito difícil de alcançar. Eles assumiram a continuidade de algo que não é o que habitualmente se denomina América Latina, senão América Ibérica, a Nova Europa renascida, após suas múltiplas e iniciáticas mortes. Isso é assim porém ninguém quer, nem se anima a reconhecê-lo.
Nós o reconhecemos, porque formamos parte da aventura inigualável da cultura europeia em sua continuidade milenária. Nossa antiga matriz cultural projeta todavia sua elevada sombra sobre nós, se projeta e transmutam os processos culturais da Europa, em um território que é também Europa culturalmente; uma nova Europa que necessita custe o que custar da grandeza da antiga, nos espaços intermináveis que se fizeram a sua imagem na infinitude mágica e misteriosa do novo continente, onde seus homens tiveram que assumir um novo enraizamento a partir do exílio, nessa idade escura da decadência, com as formas particulares do crioulismo, para poder voltar a ser.
Se queremos compreender nossa identidade cultural e suas obras, devemos nos aventurar na dolorosa idéia do que Oswald Spengler chamara "Der Untergang des Abendlandes" - e que foi traduzido como "A Decadência do Ocidente" - isso nos representa muito mais do que a mal chamada "América Latina".
Espero que nos jardis escuros do Rio da Prata, se sigam escrevendo por muito tempo as palavras simbólicas que conjurem uma e outra vez a decadência, partindo da assunção definitiva de uma identidade negada por ignorância, por conveniência, ou por covardia.
América românica, América hispânica, América crioula - porque há que dizer mil vezes, que crioulo é o descendente de europeu nascido fora da Europa - essa é nossa identidade, dinâmica sim, porém sem negar jamais milênios de uma cultura própria para assumir uma alheia.
Para poder respeitar há que exigir a sua vez ser respeitados, e para ser respeitado devemos nos respeitar primeiramente a nós mesmos, sendo cabalmente conscientes de qual é nossa real e verdadeira identidade. Somente esse respeito nos dará a força necessária para enfrentar os que não nos respeitam.
Sirva este pequeno texto introdutório, para inaugurar uma série de textos que mostrem e demonstrem algo que em condições normais, não seria necessário demonstrar: que os países da América Ibérica são feitio da Europa, e que o crioulismo é uma identidade forjada a partir do eixo incontroverso da cultura europeia profunda, ainda que haja recebido em maior ou menor medida e segundo cada país, outros aportes.
quinta-feira, 6 de março de 2025
Alberto Buela - O Cavalo no Martín Fierro
por Alberto Buela
(2011)
O que já não foi dito sobre o nosso Poema Nacional que poderíamos dizer nós. Aqui, só nos ocuparemos de um detalhe: aquilo que Fierro diz sobre o cavalo. Claro está que não é um detalhe menor, pois não se pode pensar no gaucho sem o cavalo, a menos que estejamos falando dos gaúchos paraguaios, que como muito bem diz don Justo Pastor Benítez em seu belo "Solar Guaraní", eles são "gaúchos a pé", especialmente após a desastrosa Guerra da Tríplice Aliança (1865-1870) que destruiu vidas e fazendas do Paraguai.
Da leitura atenta desses versos, depreendem-se três ou quatro ideias: destaca-se, em primeiro lugar, a paciência como regra na doma dos potros; depois, a regularidade das tarefas até criar-lhes um hábito; e, acima de tudo, a suavidade no manejo do animal. Como vemos, se há algo que Fierro desaconselha, é o uso de golpes e violência na educação do cavalo. Por isso, ele pode falar de "muitos frangoyadores", pois frangollón é o trapalhão, aquele que faz algo apressada e malfeito.
Fazer um animal completo como o "moro de número", ou seja, destacado e excepcional como aquele que Fierro levou à fronteira, implica muito tempo, e isso era um privilégio possível naquela época, quando "o tempo ainda era a demora do que está por vir", e não como agora, que se transformou em dinheiro: time is money, como querem nos inculcar os meios de comunicação de massa. Assim, podemos dizer que resgatar aquele tempo tão americano, entendido como "amadurecer com as coisas", é uma das tarefas mais exigentes da atualidade, porque, em última análise, trata-se de resgatar o aspecto existencial da vida crioula, que a intelligentsia nativa sempre associou à sesta, à vagância e à indolência, seja nativa ou gaúcha.
Quando são publicados trabalhos como o presente, oriundos de uma coleção de artigos editados em diferentes circunstâncias, corre-se o risco de que se transformem em uma coletânea de textos sem um fio condutor. Por isso, impõe-se uma breve explicação ao leitor desta obra.
Em primeiro lugar, publicamos este texto a pedido de vários amigos que viam essa série de reflexões se perder dispersa aqui e ali. E, em segundo lugar, porque consideramos que existe um fio condutor, pois acreditamos que todos esses trabalhos demonstram que o elemento grego é um aspecto substancial de nossa cosmovisão heleno-cristã, ambivalentemente chamada de judaico-cristã, que deve ser resgatada em todos os seus aspectos se pretendemos enfrentar com certo êxito esta globalização que se impõe e nos desnatura.
O elemento grego é, para nós, parte da tradição mais viva que o Ocidente nos legou. É por isso que pretendemos chamar a atenção para sua substituição pelo judaico, sobretudo no Ocidente anglo-saxão, a partir de uma leitura interessada, política e ideologicamente enviesada da natureza do ser ocidental. O judaico-cristianismo, como definição do Ocidente, é tão falso quanto o latino-americanismo como definição de Nossa América.
Resgatar os ensinamentos dos gregos em seus aspectos primordiais tem sido, e continua sendo, uma tarefa de todos os tempos, e que os pensadores desprovidos de aditivos ideológicos devem realizar, nem que seja por uma ascese da inteligência. E os artistas, como uma imersão na beleza em sua forma mais pura.
O cavalo está presente ao longo do poema, mas contrariamente ao que se poderia pensar, como tema é considerado apenas uma vez por Fierro, e ele o faz a propósito do tratamento na doma e do uso que o índio lhe dava, com uma menção esporádica à doma crioula. Esta última é relatada logo no início do poema, quando falando da vida bucólica do gaucho, período que vai desde os primeiros tempos de vaqueiradas até a época de Rosas, ele diz:
"Eu conheci esta terra,
onde o peão vivia
e tinha seu ranchinho
e seus filhos e mulher...
era uma delícia ver
como passava os dias."
E algumas estrofes mais adiante, ele relata o trabalho do domador dizendo:
O que era peão domador
endereçava o curral,
onde estava o animal
-bufando como o diabo... -
e, mais maldoso que sua sogra,
se encrespava o bagual.E lá o gaúcho inteligenteassim que o potro encabrestou,os arreios ajeitou,e montou nele de imediato,pois o homem mostra na vidaa astúcia que Deus lhe deu.E nas praias corcoveandoem pedaços se fazia o cavaloenquanto ele pelas espáduaslhe jogava as rédease ao som das selassaía fazendo-lhe manobras.
Como podemos ver, isso é, mais ou menos, o que ainda é feito hoje no adestramento comum de potros. Embora haja algumas diferenças, já que, pelo menos nos pampas úmidos, a grande carona de couro, que era tão popular com o lomillo no século passado, não é mais usada. Hoje, o recado de bastos o substituiu, embora valha a pena observar que recentemente houve uma recuperação do lomillo, embora não no uso cotidiano, pelo menos nos centros tradicionalistas, e isso é lisonjeiro.
A primeira observação que Fierro faz sobre o tratamento dado pelo índio ao seu pingo é sobre o tipo de passo que ele usou.
Faz troteadas tremendasdo fundo do deserto.........................Marcha o índio em trote longo,passo que rende e dura.
Isso permaneceu conosco sob o nome de “trote crioulo”, um passo usado para marchas longas e que adquire toda a sua força após o segundo suor, quando o animal consegue adaptar totalmente o corpo e a respiração ao ritmo desse passo.
Ele também descreve a maneira de montar:
Sempre cheios de receiosnos cavalos peludoseles vêm seminus.Dessa forma, cavalga com levezanão cansa o mancarron;
E como eles cuidam dele e o vigiam até mesmo à noite:
Porque, velando por ele, não come,nem ainda o sono concilia;Somente nisso não há desídia;se noite, lhes asseguro,para mantê-lo seguroa família o cerca.
Fierro exalta a bondade da carga aborígine, sua velocidade e destreza, em duas ocasiões, uma delas na fronteira, quando luta com o filho de um cacique:
Todo pampa anda valenteestá sempre bem montadoQue frotas os bárbaros trazem!como uma luz de ligeiros!
E o outro depois do duelo em defesa do cativo cujo filho pequeno foi morto:
Eu me sentei com o dos pampas,era um escuro cobertoera um pingo como galgoque sabia correr boleado.
Imediatamente após esse verso, localizado no canto X de La Vuelta, começa a longa exposição de onze linhas sobre o treinamento e a educação do cavalo pelo índio.
É interessante notar que Fierro não trata mais do assunto do cavalo, exceto por uma menção esporádica ocasional. Isso quer dizer que praticamente a partir da segunda metade do poema - La Vuelta tem trinta e três versos, enquanto a primeira parte de El Gaucho Martín Fierro tem apenas treze - o cavalo desaparece como tema.
O pampa educa o cavalocomo para um entrevero;como raio é de ligeiroassim que o índio o toca;e, como pião, na bocadá voltas sobre um couroO embaralha na madrugada;
jamais falta nesse dever;
logo o ensina a correr
entre lamas e atoleiros;
assim esses animais
é quanto se pode ver!No cavalo de um pampa
não há perigo de rolar,
arre! e pra disparar
é pingo que não se cansa;
com prodigalidade o amansa
sem deixá-lo corcovear.Para tirar as cócegascom cuidado o manuseia;horas inteiras emprega,e, enfim, só a deixa,quando dobra as orelhase o potro nem coiceia.Jamais o sacude um galopeporque trata o bagualcom paciência sem igual;ao domá-lo não o pega,até que, por fim, se entregajá dócil o animal.E eu sobre os bastossei como sacudir a poeira,a esse costume me amoldo;com paciência o manejame ao dia seguinte o deixamrédea acima junto ao toldo.Assim todo o que procureter um pingo modeloHá de cuidá-lo com desvelo,e deve impedir tambémo que de golpes lhe deemou lancem no solo.Muitos querem dominá-locom rigor e açoite,e se virem o chafaloteque tem figura de mau,o marcam em algum pauo marcam em algum pauaté que se descogoteie.Todos se tornam prontos
e voltados para selá-lo:
dizem que é para quebrá-lo,
mas compreene qualquer tolo
que é por medo da corcova
e não querem confessá-lo.
O animal equino
(perdoe-me a advertência)
é de muita sapiência
e tem muito sentido;
é animal consentido:
o cativa a paciência.Todos se tornam prontos
e voltados para selá-lo:
dizem que é para quebrá-lo,
mas compreene qualquer tolo
que é por medo da corcova
e não querem confessá-lo.
O animal equino
(perdoe-me a advertência)
é de muita sapiência
e tem muito sentido;
é animal consentido:
o cativa a paciência.
Sobressai aos demais
O que estas coisas entenda;
é bom que o homem aprenda,
pois há poucos domadores
e muitos apressados
que andam com focinheira e freio.
Da leitura atenta desses versos, depreendem-se três ou quatro ideias: destaca-se, em primeiro lugar, a paciência como regra na doma dos potros; depois, a regularidade das tarefas até criar-lhes um hábito; e, acima de tudo, a suavidade no manejo do animal. Como vemos, se há algo que Fierro desaconselha, é o uso de golpes e violência na educação do cavalo. Por isso, ele pode falar de "muitos frangoyadores", pois frangollón é o trapalhão, aquele que faz algo apressada e malfeito.
Fazer um animal completo como o "moro de número", ou seja, destacado e excepcional como aquele que Fierro levou à fronteira, implica muito tempo, e isso era um privilégio possível naquela época, quando "o tempo ainda era a demora do que está por vir", e não como agora, que se transformou em dinheiro: time is money, como querem nos inculcar os meios de comunicação de massa. Assim, podemos dizer que resgatar aquele tempo tão americano, entendido como "amadurecer com as coisas", é uma das tarefas mais exigentes da atualidade, porque, em última análise, trata-se de resgatar o aspecto existencial da vida crioula, que a intelligentsia nativa sempre associou à sesta, à vagância e à indolência, seja nativa ou gaúcha.
Quando são publicados trabalhos como o presente, oriundos de uma coleção de artigos editados em diferentes circunstâncias, corre-se o risco de que se transformem em uma coletânea de textos sem um fio condutor. Por isso, impõe-se uma breve explicação ao leitor desta obra.
Em primeiro lugar, publicamos este texto a pedido de vários amigos que viam essa série de reflexões se perder dispersa aqui e ali. E, em segundo lugar, porque consideramos que existe um fio condutor, pois acreditamos que todos esses trabalhos demonstram que o elemento grego é um aspecto substancial de nossa cosmovisão heleno-cristã, ambivalentemente chamada de judaico-cristã, que deve ser resgatada em todos os seus aspectos se pretendemos enfrentar com certo êxito esta globalização que se impõe e nos desnatura.
O elemento grego é, para nós, parte da tradição mais viva que o Ocidente nos legou. É por isso que pretendemos chamar a atenção para sua substituição pelo judaico, sobretudo no Ocidente anglo-saxão, a partir de uma leitura interessada, política e ideologicamente enviesada da natureza do ser ocidental. O judaico-cristianismo, como definição do Ocidente, é tão falso quanto o latino-americanismo como definição de Nossa América.
Resgatar os ensinamentos dos gregos em seus aspectos primordiais tem sido, e continua sendo, uma tarefa de todos os tempos, e que os pensadores desprovidos de aditivos ideológicos devem realizar, nem que seja por uma ascese da inteligência. E os artistas, como uma imersão na beleza em sua forma mais pura.
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