Por Daniel Matos
Em agosto de 1961, o Brasil viveu um dos momentos mais dramáticos de sua história política: a Campanha da Legalidade. Tudo começou com a renúncia surpresa do presidente Jânio Quadros, em 25 de agosto, que deixou o país à beira do caos. Setores militares e conservadores, alegando temores infundados de uma "ameaça comunista", tentaram impedir a posse do vice-presidente João Goulart, então em viagem à China.
Foi no Rio Grande do Sul, sob a liderança firme do governador Leonel Brizola, que a resistência se organizou. Com discursos inflamados transmitidos pela Rádio da Legalidade, armas distribuídas à população e o apoio crucial do general José Machado Lopes, Brizola transformou o Palácio Piratini em um quartel-general da democracia. O movimento, que durou 13 dias tensos, evitou um golpe militar e garantiu a posse de Jango — ainda que sob um sistema parlamentarista, uma concessão amarga para os legalistas .
A Campanha da Legalidade não foi apenas uma vitória constitucional; foi um ato de coragem coletiva, mostrando que, quando o povo se une em defesa da democracia, até os tanques recuam. Este episódio, hoje pouco lembrado, é um farol para o Brasil e para o mundo: a legalidade não se negocia, ela se defende.
Há momentos na história em que o destino de uma nação se decide não apenas nos gabinetes de poder, mas nas ruas, nos microfones e na coragem de quem se recusa a aceitar a ruptura da ordem constitucional. A Campanha da Legalidade, em agosto de 1961, foi um desses episódios épicos — uma batalha cívica que transformou o Rio Grande do Sul no palco da resistência democrática e Leonel Brizola em seu principal bardo e comandante.
O Cenário da Crise: A Renúncia e a Ameaça Golpista
Tudo começou com um ato surpreendente: no dia 25 de agosto de 1961, o presidente Jânio Quadros renunciou ao cargo, alegando que "forças terríveis" o pressionavam. Sua decisão, envolta em mistério (muitos acreditam que era uma manobra para retornar com mais poderes ), deixou o país à beira do caos. Pela Constituição, o vice-presidente João Goulart — então em viagem à China — deveria assumir. Mas setores militares e políticos conservadores, temendo sua ligação com movimentos trabalhistas e a esquerda, vetaram sua posse, alegando que Jango representava uma "ameaça comunista" em plena Guerra Fria .
Era um golpe em gestação. Os ministros militares — Odílio Denys (Guerra), Sílvio Heck (Marinha) e Gabriel Grün Moss (Aeronáutica) — formaram uma junta informal e anunciaram que Goulart não tomaria posse. O presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, assumiu interinamente, mas o poder real estava nas mãos dos generais .
Brizola e a Revolução das Ondas de Rádio
Foi então que Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul e cunhado de Jango, transformou Porto Alegre no quartel-general da resistência. No Palácio Piratini, ele improvisou um estúdio de rádio e criou a "Cadeia da Legalidade", uma rede de mais de 100 emissoras que transmitiam seus discursos inflamados 24 horas por dia . Sua voz ecoava pelo país:
"Povo de Porto Alegre, meus amigos do Rio Grande do Sul! [...] Poderei ser esmagado. Poderei ser destruído. Poderei ser morto. Não importa. Ficará o nosso protesto, lavando a honra desta nação."
Brizola não apenas falou — agiu. Distribuiu armas à população, mobilizou a Brigada Militar e conseguiu o apoio crucial do general José Machado Lopes, comandante do III Exército, que rompeu com os golpistas e colocou suas tropas ao lado da legalidade . O cenário era de guerra iminente: tanques se moviam, aviões da Aeronáutica ameaçavam bombardear o Piratini, e multidões se aglomeravam no centro de Porto Alegre, prontas para defender a democracia .
O Clímax: O Brasil à Beira da Guerra Civil
Por dias, o país esteve à beira de um conflito armado. Tropas federais se preparavam para invadir o Sul, enquanto Brizola e seus aliados fortificavam posições. A "Divisão Cruzeiro", uma força militar golpista, avançava em direção ao Paraná, e o porta-aviões Minas Gerais rumava para o litoral gaúcho .
Mas a resistência popular e a divisão nas Forças Armadas impediram o pior. Em 1º de setembro, Jango chegou a Porto Alegre, e, sob pressão, os golpistas recuaram. A solução negociada foi a adoção do parlamentarismo, limitando os poderes de Goulart — uma concessão amarga para Brizola, que queria a posse integral .
Em 7 de setembro, Jango assumiu a presidência. A Legalidade venceu, mas a semente da crise não estava morta: três anos depois, em 1964, os mesmos setores golpistas retornariam, agora com sucesso, no golpe que instaurou a ditadura militar .
O Legado: Uma Epopeia Cívica
A Campanha da Legalidade foi mais do que um episódio político — foi uma epopeia moderna, onde o povo, armado de convicção e liderado por uma voz firme, mostrou que a democracia pode ser defendida. Brizola, com seu talento oratório e audácia, entrou para a história como o líder que derrotou um golpe antes que ele acontecesse .
Sua estratégia de comunicação — usando o rádio como arma — foi revolucionária. A "Cadeia da Legalidade" não apenas informou, mas mobilizou o país, antecipando o poder das redes sociais na luta contra a desinformação .
E, acima de tudo, a Legalidade mostrou que a Constituição não é uma folha de papel — é um pacto vivo, que depende da coragem de quem a defende. Como escreveu o historiador Jorge Ferreira:
"Foi a única vez, no Brasil, em que um movimento civil conseguiu impedir um golpe militar que tinha a adesão dos três ministros militares e 70% da força armada do país."
Hoje, quando a democracia volta a ser posta à prova em várias partes do mundo, a Campanha da Legalidade permanece como um farol — lembrando que, quando o povo se une em defesa da lei, até os tanques podem recuar.
Por que, no fim, a verdadeira força de uma nação não está nos canhões, mas na voz daqueles que se recusam a calar.